O bom audiófilo é assim: o som está acima de tudo, dos amigos, da mulher e até dos filhos.
Meu amigo me confessou que ultimamente o som vem lhe dando mais prazer do que a esposa.
Filhos só dão problema. E problemas, cada um com os seus.
Antigamente, eu acreditava que para além da função básica de se ouvir um som, a audiofilia servia para aumentar o rol de amizades e estreitar as afinidades entre os amigos.
Talvez eu só tivesse me atentado para a primeira parte da definição do Aurélio, que explica que o elemento de composição “filia”, se traduz em amizade; afinidade, amor e afeição.
Talvez eu não tenha continuado prá frente e lido que ‘filia’ também pode querer dizer ‘tendência patológica’.
Foi a duras penas que aprendi que amizade é amizade, mas o som... Ah, o som... Isso é como paixão por amante secreta. Uma religião, um ópio.
Sem sacanagem, brinque com uma pessoa, mas não brinque com a aparelhagem de som dessa pessoa.
Quantos eu conheço que os filhos nem sequer podem passar perto.
De tantos eu sei que ficaram sem a família, mas que mantêm uma belíssima aparelhagem.
Eu mesmo faço de tudo pra não entrar numa briga, mas viro bicho quando estou disputando um aparelho.
É meu! Quanto quer?
Já soube de casos escabrosos, em que amigos disputaram a tapa aparelhos em leilões do e-Bay.
Hoje eu sei: brinque até com a mãe, mas não brinque com a aparelhagem de ninguém.
Quantos amigos eu já perdi, quantas amizades esfriaram, desde as mais fortes e sinceras até às bem superficiais, só porque eu não podia atender os interesses audiófilos prementes, só porque eu não mais podia ser usado em função de uma finalidade audiófila.
Vi-me praticamente substituído, suplantado, passado pra trás e largado, depois de ter servido e ter sido beijado por três vezes em frente do espelho.
Esse tipo de patologia parece ser imune ao sexo feminino, fazendo parte quase que exclusivamente do universo masculino.
Longe de mim, ingressar em elucubrações filosóficas góticas e ‘gosmóticas’, pior ainda se eu quisesse (Pai, afasta de mim esse cálice...), dar uma de psicólogo enólogo amador, de charuto na boca e com a cadeira na bunda.
Mas acho que enquanto as meninas exercitam o amor através de brincadeiras com bonecas, e exacerbam a subserviência através de brincadeiras de casinha, nós meninos exercitamos o ter e o poder através de nossos brinquedinhos.
Chega, já basta! O papo já ficou cabeça demais.
“Everybody must get stoned”.
O vilipêndio audiófilo se dá em diversos patamares da inferioridade humana, que vão desde simples e pura mesquinhez, até culminar no ódio.
Passa também por questões espúrias e econômicas, que elevam a carga explosiva da ganância avassaladora detonada facilmente pelo pavio curto dos interesses econômicos ou pessoais, que aí ninguém consegue prever como pode acabar.
Não bote muita fé na sinceridade das amizades criadas a partir do gosto em comum pelo áudio, claro que existem as exceções para confirmar a regra, mas precisei colecionar um sem número de decepções amargas para chegar a esta conclusão sabendo a fel.
Portanto, agora com o coração já calejado indico aos neófitos que adentrem o templo da audiofilia sempre pisando em ovos.
A primeira regra básica é não falar mal do equipamento de ninguém pela frente desse alguém, mas por trás desça o cacete.
A segunda, talvez... Bem, sei lá.
Sou uma merda nesse jogo e sempre me deixo enganar.
Rui Fernando Costa.